O TOMBAMENTO COMO INSTRUMENTO DE
PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO...
Introdução
A preocupação dos
cidadãos com o tema preservação é recente e ainda bastante tímida, se comparada
a outras nações; no entanto, paulatinamente vai ganhando força uma consciência
“ecológica e cultural” que, se espera, seja transmitida às gerações futuras.
Não obstante, em sede jurídica, a tutela dos bens materiais que integram o
patrimônio cultural e paisagístico já existe e está consolidada de longa data,
inclusive em sede constitucional, embora a Constituição de 1988 tenha sido
aquela que mais amplamente tratou do assunto.
Dentre as várias
formas de ação do Estado em prol da manutenção do patrimônio cultural,
destaca-se aquela mais comum e mais antiga: o tombamento, instituto considerado
num grau inicial em matéria de intervenção pública na propriedade privada, pois
não expropria, mas também não permite ao titular do domínio o exercício pleno
das faculdades ou senhorias da propriedade.
Noção e finalidade
do tombamento
O tombamento é um
instrumento jurídico de proteção ao patrimônio natural e cultural. Quando uma
pessoa é proprietária de um bem de valor para a cultura do país, o Estado pode
intervir e sujeitá-la a um regime especial de tutela, usando de seu domínio
eminente no cumprimento do dever de proteção à cultura. Esta limitação ao
direito de propriedade é consentânea com vários dispositivos constitucionais
que, em conjunto, atribuem uma função social à propriedade (arts.5º, XXIII,
170, III, e 182, § 2º).
Procura-se através
da medida evitar que o proprietário faça alterações, ou mesmo destrua a coisa,
eliminando vestígios de fatos, épocas, do interesse da sociedade, ou ainda as
áreas de interesse paisagístico. É importante destacar que as restrições
administrativas ao direito de propriedade não se direcionam apenas ao imóvel
tombado, mas podem atingir sua vizinhança, a fim de permitir que o entorno não
fique descaracterizado.
O vocábulo deriva
do verbo tombar, que significa inscrever, individualizando, um bem móvel ou
imóvel em um livro próprio na repartição federal, estadual ou municipal (Livro
do Tombo)1.
Diogo de
Figueiredo Moreira Neto vê no instituto do tombamento uma ação direta do
Estado na propriedade privada, com caráter interventor e ordenador, “limitativa
de exercício de direitos de utilização e de disposição gratuita, permanente e
indelegável,
1 CRETELLA JUNIOR, José. Tombamento. In Enciclopédia Saraiva
do Direito
Preservação
e tombamento
Preservação é um
conceito genérico. Segundo Sonia Rabello de Castro, “é toda e qualquer ação do
Estado que vise conservar a memória de fatos ou valores culturais de uma nação”5. O tombamento é uma forma legal
de preservação, mas existem outras que, inclusive, não atingem o direito de
propriedade, como fomentos concedidos pela administração à conservação de bens
ou à manifestações culturais 6.
A Constituição de 1988 (art. 216, § 1º) prevê várias maneiras de proteção ao
patrimônio cultural (desapropriação, inventários, registros, vigilância); em
algumas delas há uma intervenção até mesmo definitiva na propriedade privada,
mas outras podem ser efetivadas sem que o proprietário seja prejudicado.
A Lei nº 3.924/61
pôs sob guarda e proteção do poder público os monumentos arqueológicos ou
pré-históricos, de qualquer natureza, existentes no território nacional e
todos os elementos que neles se encontram. A propriedade superficiária é regida
pelo direito civil, mas não inclui a das jazidas arqueológicas ou
pré-históricas, nem a dos objetos nelas incorporados.
Para os fins de
proteção, consideram-se monumentos arqueológicos ou pré-históricos:
a) as jazidas de
qualquer natureza, origem ou finalidade, que representem testemunhos de cultura
dos paleoameríndios do Brasil, tais como sambaquis, montes artificiais ou
tesos, poços sepulcrais, jazigos, aterrados, estearias e quaisquer outras não
especificadas aqui, mas de significado idêntico a juízo da autoridade
competente;
b) os sítios nos
quais se encontram vestígios positivos de ocupação pelos paleoameríndios tais
como grutas, lapas e abrigos sob rocha;
c) os sítios
identificados como cemitérios, sepulturas ou locais
7 Sambaqui é um
depósito natural de refugos (ossos, conchas e resíduos diversos), acumulado
pelo homem pré-histórico. No Brasil, concentram-se especialmente na faixa
litorânea dos Estados de Santa Catarina, Paraná e São Paulo. O interesse na
preservação dos sambaquis é arqueológico, já que no meio do material enterrado
é possível encontrar restos de utensílios domésticos e instrumentos feitos de
pedra, chifre e osso, capazes de fornecer informações sobre as condições de
vida do homem pré-histórico, impondo-se a proteção do Estado para fomentar os
estudos dos povos pré-históricos que habitavam o território brasileiro. REVISTA BRASILEIRA
DE ESTUDOS POLÍTICOS 72
de pouso prolongado ou de
aldeiamento, “estações” e “cerâmios”, nos quais se encontram vestígios humanos
de interesse arqueológico ou paleoetnográfico;
d) as inscrições rupestres ou locais como sulcos de
polimentos de utensílios e outros vestígios de atividade de paleoameríndios.
O proprietário de um imóvel onde estejam localizados
sambaquis, casqueiros, concheiros, birbigueiras ou sernambis, bem como de um
sítio onde se encontre vestígios positivos de ocupação pelos paleoameríndios,
cemitérios, sepulturas ou locais de pouso prolongado ou de aldeamento,
“estações” e “cerâmios”, inscrições rupestres ou locais como sulcos de
polimentos de utensílios, não pode aproveitar tais bens economicamente (são
coisas fora do comércio), nem destrui-los ou mutilá-los. Qualquer utilização do
terreno só será permitida após a conclusão das pesquisas arqueológicas. O
descumprimento dessas obrigações é considerado crime contra o patrimônio
nacional (art. 5º).
Extensão do
Tombamento e Competência
A Constituição de
1988 divide a competência (e também a fiscalização) entre a União, os Estados,
Distrito Federal e os Municípios (arts. 24, VII e 30, IX), estes últimos com
pertinência ao patrimônio histórico-cultural local.9
Não só os bens de
excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico
podem ser tombados. São equiparados a estes bens, sujeitando-se ao regime
especial de proteção, os monumentos naturais, sítios e paisagens que, a
critério da autoridade administrativa, importe conservar e proteger, sempre
tendo como fundamento sua feição notável dada pela natureza ou pela ação do
homem. Assim, é possível o tombamento de paisagens autóctones ou não
autóctones, como uma mata virgem ou um jardim botânico.
O objeto material do tombamento
O tombamento, como
já salientado, é o ato final de um procedimento administrativo, resultante do
poder discricionário da administração pública que intervém na propriedade
privada para impor um regime especial de cuidados sobre determinado ou
determinados bens, em razão de suas características peculiares, buscando o
Estado com esta gestão cumprir sua função institucional de agente protetor do
patrimônio cultural e natural brasileiro, atendendo ao interesse coletivo de
preservação.
Insta distinguir,
como põe em relevo José Cretella Junior16, a decisão sobre o tombamento da
inscrição do bem num Livro do Tombo. O tombamento, como processo
administrativo, é um iter que tem início com a individuação do
bem, passando pela manifestação do proprietário, decisão da autoridade
competente, e, finalmente, a inscrição no livro público. Sob este aspecto
(final),
16 Op.cit.,
p.3. No mesmo sentido Diógenes Gasparini. Direito administrativo. 4.ed.
São Paulo: Saraiva, 1995.REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLÍTICOS 82
o tombamento é um fato administrativo (ato material praticado
por funcionário público responsável, no exercício da administração), mas a decisão
de tombar é um ato administrativo. Trata-se, ademais, de uma intervenção na
propriedade privada realizada pelo Estado, uma limitação parcial, onde a
desapropriação ocupa o grau extremo.
Apesar de o tombamento ser um instrumento em prol da
preservação do patrimônio cultural e natural, é preciso advertir que ele não se
aplica a qualquer bem. A Constituição de 1988 ao incluir no âmbito da tutela
estatal os bens imateriais (art. 216, I, II e III) não os sujeitou
necessariamente ao tombamento. A proteção a esse patrimônio incorpóreo é feita
através de outros instrumentos (desapropriação, inventários, campanhas de
divulgação, disciplinas específicas nos currículos escolares, etc), de modo a
manter vivo na consciência dos cidadãos a prática dessas manifestações. Sonia
Rabello de Castro 17, com proficiência, afasta a incidência do tombamento
aos bens imateriais, sustentando que a lei deva criar mecanismos específicos de
proteção para eles.
O Supremo Tribunal Federal adota o entendimento supra, como é possível
inferir a partir da seguinte ementa de decisão proferida em Recurso
Extraordinário:
Tombamento.
Par.1º. do artigo 216 da Constituição Federal.
A única questão
constitucional invocada no recurso extraordinário que foi prequestionada foi a
relativa ao par. 1º do artigo 216 da Carta Magna. Às demais falta o requisito
do prequestionamento (Súmulas 282 e 356).
No tocante ao
par.1º do art. 216 da Constituição Federal, não ofende esse dispositivo
constitucional a afirmação constante do acórdão recorrido no sentido de que há
um conceito amplo e um conceito restrito de patrimônio
17 Op.cit.,
p.69.O
TOMBAMENTO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO... 83
histórico e artístico, cabendo à legislação
infraconstitucional adotar um desses dois conceitos para determinar que sua
proteção se fará por tombamento ou por desapropriação, sendo que, tendo a
legislação vigente sobre tombamento adotado a conceituação mais restrita,
ficou, pois, a proteção dos bens, que integram o conceito mais amplo, no âmbito
da desapropriação. Recurso extraordinário não conhecido. Unânime. 18
Outra crítica feita pela autora é em relação à
expressão “patrimônio nacional” utilizada pelo Decreto-Lei nº 25/37 (art. 1º).
A terminologia não pode abarcar os interesses dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios. O correto seria denominá-lo “patrimônio federal”, haja vista
serem bens de interesse da União, pois a competência é concorrente, inclusive o
órgão responsável para determinar o tombamento (IPHAN) é federal.
Os bens de valor cultural ou natural têm um valor
destacado que representa, por si só, um bem imaterial de conteúdo não
econômico, insuscetível de apropriação individual, já que pertence a todos os
brasileiros. O valor contido nas coisas de interesse histórico, cultural ou
natural é, em seu todo, um bem público de uso comum (res communes
omnium),
encarado como uma universalidade de direito, cuja conservação interessa a toda
sociedade. A comunidade nacional tem, outrossim, um direito subjetivo público
de vê-lo protegido.
O reconhecimento
do valor excepcional de uma coisa (móvel ou imóvel, material ou imaterial) e
sua ligação com a história, as artes e a paisagem brasileiras, devidamente
comprovadas, não se resume unicamente em o Estado avocar para si sua tutela.
Qualquer cidadão tem o direito subjetivo (de caráter difuso) de ver a coisa
protegida, embora não seja o titular imediato desta
18 BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. Primeira turma. RE nº 182782 / RJ, Relator: Ministro Moreira
Alves, julgamento em 14/11/1995 In Diário da Justiça de 09/02/95,
p.2092.REVISTA
BRASILEIRA DE ESTUDOS POLÍTICOS 84
universalidade, mas pode exigir a sua conservação e
restauração pelos meios processuais próprios, v.g., a ação popular (art. 1º,
§1º, da Lei nº 4.717/65).
Natureza jurídica
do tombamento
Paulo Affonso Leme
Machado observa que uma das finalidades do tombamento é a conservação da
coisa, possibilitando a manutenção da propriedade com o particular, evitando-se
a estatização de todo o patrimônio cultural. Conquanto o proprietário conserve
seu domínio, o bem fica submetido a “um regime jurídico de tutela pública”28.
É oportuno
recordar que o direito de propriedade não é absoluto, ao contrário do que
outrora se pensava a partir do Código Civil francês, podendo sofrer limitações
voluntárias (como os jura in re aliena) ou legais. Nesse sentido, o
art.1228 do Código Civil, verbis:O TOMBAMENTO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO
AO PATRIMÔNIO... 87
O proprietário tem a faculdade de usar,
gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente
a possua, ou detenha.
§1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância
com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio
histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das
águas. [sublinhou-se]
O tombamento é uma intervenção administrativa na propriedade
privada, que impõe ao proprietário deveres positivos e negativos, podendo
demitir-se do cumprimento desses deveres se alienar o bem. Alienando-o, as
obrigações são também impostas ao adquirente, inclusive aos sucessores.
No tombamento não há desmembramento de nenhuma das
faculdades dominiais, donde ser possível afirmar que o instituto preserva o
atributo da exclusividade da propriedade. Não obstante, a sujeição da coisa a
um regime especial de tutela, de ordem pública, acarreta condicionamentos ao
exercício dos jura utendi, fruendi e abutendi, este considerado a mais
relevante expressão da propriedade.
O Decreto-Lei nº
25/37 ao tratar dos efeitos do tombamento enumera várias restrições, inclusive
quanto à alienabilidade, não só aos proprietários, como àqueles que possuem
imóveis vizinhos aos bens tombados. Assim, o bem tombado não poderá sair do
país, salvo por curto prazo, sem transferência de domínio e para fim de
intercâmbio cultural, a juízo do Conselho Consultivo do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. As coisas tombadas não poderão, em caso algum,
ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas
ou restauradas, sob pena de multa de cinqüenta por cento do dano REVISTA BRASILEIRA
DE ESTUDOS POLÍTICOS 88
causado. E ainda sem
prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não
se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que impeça ou
reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser
mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso a multa de
cinqüenta por cento do valor do mesmo objeto.
Caio Mário da Silva Pereira19,
analisando a faculdade de disposição do proprietário sobre a coisa (jus abutendi), ensina:
Não pode também o abutere traduzir-se
por destruir, porque nem sempre é lícito ao dominus fazê-lo, mas
somente em dadas circunstâncias. Ao revés, a ordem pública opõe-se a que o
titular do direito intente destruir a coisa, prejudicando terceiros, ou atentando
contra a riqueza geral.
Sem dúvida, é um
instituto de direito administrativo, mas como qualificá-lo dentro do próprio
Direito Administrativo? Várias explicações têm sido formuladas para o
tombamento:
a) limitação
administrativa ao direito de propriedade com o objetivo de compatibilizar os
direitos subjetivos do proprietário com os direitos subjetivos públicos
(corrente dominante) 20;
b) servidão
administrativa, uma vez que o tombamento decorre de ato específico da
administração pública, impondo um gravame ao proprietário; por conseguinte,
cria uma situação nova que atinge o próprio direito de propriedade 21;
c) intervenção na
propriedade privada a bem do interesse público: a propriedade particular pode
adquirir institucionalmente
19 PEREIRA, Caio Mário
da Silva. Instituições de Direito Civil. v. IV. 2.ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1991, p.74.
20 Partilham dessa
posição, entre outros, Sonia Rabello de Castro, Maria Sylvia Zanella di Pietro,
José Cretella Junior, Diógenes Gasparini e Hely Lopes Meirelles.
21 É a opinião,
entre outros, de Celso Antonio Bandeira de Mello, Lúcia Valle Figueiredo e Ruy
Cirne de Lima.O
TOMBAMENTO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO... 89
um interesse coletivo, sujeitando-se a um regime próprio com
relação ao exercício das faculdades jurídicas referentes ao domínio. Em vista
do interesse público que cerca o bem, a administração passa a ter uma potestas in rem para assegurar sua
conservação e proteção 22.
Foto do encontro dos Rios: FOLHETA/PEIXE 2004
Foto no mesmo local atual: ASSOREAMENTOS
Documento na íntegra click no link abaixo:
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